sábado, 19 de junho de 2010

A qualidade do nosso riso

CQC e o pseudo-engajamento

Há pouco tempo, tomamos parte indiretamente na crítica que fizeram ao programa CQC, da Bandeirantes, comandado pelo jornalista Marcelo Tas. Em meu comentário, ressaltei as contradições e o cinismo do tipo de reportagens acusatórias que este programa realiza, e que não o impedem de assumir para o grande público a falaciosa posição de quem está criticando a realidade brasileira – como se preparar armadilhas, humilhar entrevistados e se apoiar no senso comum sobre a política e a corrupção fossem atitudes louváveis e originais, ou acendessem algum tipo de reflexão política ou moral na televisão brasileira.

Diante dos humoristas-repórteres que fazem qualquer coisa, custe o que custar, parecem mais que razoáveis os argumentos radicais de Baudrillard ao defender a desconexão entre a nossa experiência do mundo e as imagens que sustentam a sua improvável unidade. O CQC é um exemplo da perda de sentido da própria crítica no espetáculo midiático contemporâneo. Tanto da crítica quanto do seu objeto, tanto da insatisfação com a realidade quanto da forma de expressar essa insatisfação.

O que nos restou foram as celebridades, os famosos artistas da indústria cultural, mas também os políticos em seu teatro cotidiano, onde nada nunca é o que parece, em primeira vista. Assim, o CQC explora tão somente a matéria-prima que os outros programas já filtraram e condicionaram segundo os seus próprios critérios. Não há qualquer passo atrás ou adiante, qualquer recuo ou avanço em relação ao peso simbólico do que a mídia nos oferece. Sem nenhuma novidade, numa era em que o discurso voltado para si já se tornou um clichê nas mãos de muitos, o assunto da turma de Marcelo Tas é a própria televisão. A suposta crítica ao meio, feita por eles, está na denúncia da sua falsidade.

Mas será mesmo uma denúncia? Qual o lugar do “falso” neste programa? O CQC nunca chega até o Brasil miserável, excluído da verdade televisiva, a fim de conhecer o inidêntico. Ele só tem algo a dizer para os que já estão dentro do grande jogo, abarcados por suas regras (sobretudo aquela que nos diz: mudar, impossível). Não subverte e nem pretende subverter os critérios que determinam o padrão ideológico da televisão brasileira. Está mais perto do conservadorismo dos jornais feitos para a massa do que imaginam os seus descolados admiradores. Natural, pois o CQC se aproveita do próprio envelhecimento das convenções jornalísticas – e sociais – fundadas na transparência e na objetividade positivista. Com esses princípios já caducos, faz a sua graça, sem má consciência. Morre de rir de nós mesmos, incluindo-se amistosamente na brincadeira.

O CQC se diverte com a nossa incapacidade de transformar o mundo. A diversão, em si mesma, não é um problema – problema é não perceber que, por trás dela, o mundo tem outras faces, e pode ser diferente do que é. Dito de outra maneira: se não acreditamos nos discursos dos políticos, se consideramos que todos são igualmente corruptos, o CQC não tem interesse em pôr essa tese ou as suas circunstâncias seriamente em xeque, nem em oferecer alternativas ao que está dado. Não levamos o poder a sério, assim como o próprio poder já não se leva a sério. O CQC faz o mesmo: não se leva a sério, nem leva o mundo a sério. Ele aponta o dedo, e ri. No fim das contas, tudo é válido para confirmar, um tanto perversamente, como cheira mal o abismo em que fomos lançados.

O espectador alegre ao contemplar a verdade sobre os corruptos e demais desajustados sociais tem uma espécie de prazer doentio. Pouco importa se este espectador possuirá ou não uma percepção mais profunda sobre os trâmites do sistema. Para ele, são suficientes as verdades simplórias que ouvimos corriqueiramente, numa fila de banco ou esperando o ônibus: “o Brasil não tem jeito mesmo”. Com o CQC, a crítica se rebaixa àquele nível inócuo da reclamação oportunista, como quando praguejamos contra a urbanização capitalista, ao nos vermos sufocados no trânsito de uma metrópole. Tão logo estacionamos o carro, a sobriedade servil retoma o devido lugar em nossa consciência. O CQC é a nossa diversão de fim de noite – e não é casual que ele seja exibido numa segunda-feira, quando começamos a semana de trabalho e precisamos de motivação extra. Com ela, seguimos tão conformados quanto os espectadores para quem William Bonner deseja boa noite.

O número enorme de pessoas que aplaudem o CQC e valorizam o pseudo-engajamento desse programa aponta também para a nossa falta de conhecimento sobre a história da televisão brasileira. Há pouco mais de trinta anos, na TV Tupi, quando o Brasil discutia o fim da ditadura militar, o Programa Abertura inovava esteticamente o jornalismo de entrevistas e as abordagens midiáticas do tema “cultura”. Hoje, subi no You Tube dois vídeos – inéditos no site, segundo minha pesquisa prévia – com o quadro apresentado por Glauber Rocha neste programa. Duas oportunidades de ver uma apropriação verdadeiramente criativa e crítica da mídia, e que, a meu ver, não possui continuidade hoje. Em vez de comentar especificamente os vídeos, que colei abaixo, deixo para o leitor fazer a sua própria análise, comparando o que fazia Glauber, nos anos 1970, com o que faz um programa como o CQC, em 2010.

Para tanto, é importante contextualizar os vídeos e perceber o interesse de Glauber em não anular aqueles com quem dialoga (ou aqueles que são chamados publicamente para o diálogo!), seja quando os defende ou questiona. Essa não anulação do outro, sobretudo quando nos diferenciamos dele, é o que já não consegue fazer um programa como o CQC (o outro, ali, é sempre um degrau para afirmar a caoticidade do todo). Para Glauber, a democracia era dissenso, e não consenso. Hoje, o consenso esconde as nossas diferenças para rirmos todos juntos. Mas qual seria, afinal, a qualidade do nosso riso?





Rodrigo Cássio

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